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Nicolás Maduro, que declarou ter reencontrado a fé depois de se declarar ateu aos 18 anos por causa do comportamento da Igreja Católica |
Persignar-se e rezar ave-marias é reação comum entre a maioria dos
presidentes identificados com a esquerda na América Latina, quando em
seus países se invocam reformas ligadas aos direitos civis que
contrariam a tradição. Em temas como a descriminalização do aborto ou o
consumo de drogas brandas e o estabelecimento do casamento homossexual,
suas posições tendem ao conservadorismo e a mensagem religiosa é
incorporada cada vez com maior frequência em seus discursos políticos e
em sua argumentação. No continente onde convive a maior comunidade
católica do mundo, a esquerda parece ter-se convertido.
"Que façam o que quiserem, eu jamais aprovarei a descriminalização do
aborto", disse em 19 de outubro passado o presidente equatoriano, Rafael
Correa, que define a si mesmo como "humanista, católico e de esquerda".
Correa inclusive ameaçou demitir-se se os parlamentares do bloco
governista, a Aliança País, votassem a favor de incluir essa reforma no
novo Código Penal. "Se continuarem essas traições e deslealdades (...)
apresentarei minha renúncia ao cargo", advertiu o presidente equatoriano
na mesma oportunidade. O presidente da Conferência Episcopal do
Equador, monsenhor Antonio Arregui, celebrou de imediato a postura de
Correa "pela valentia e a nobreza de ânimo com que falou".
O tema do aborto é especialmente delicado entre a esquerda mais
revolucionária e antiga. A Nicarágua e El Salvador, onde governam
respectivamente o líder da Frente Farabundo Martí de Libertação
Nacional, Mauricio Funes, e o sandinista Daniel Ortega, são os dois
países em que se pune o aborto com maior severidade, sem que haja
perspectivas de uma reforma da lei. O governo de Funes foi criticado por
não intervir a tempo no polêmico caso de Beatriz, uma jovem
salvadorenha que corria perigo de morte devido a uma gravidez inviável,
que finalmente foi interrompida por um "parto induzido" que terminou em
cesariana. Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, também se
opuseram firmemente à possibilidade de descriminalização do aborto
terapêutico. Depois de toda uma vida de ateísmo, o casal decidiu se
casar na Igreja Católica em 2005 e agora diz liderar uma revolução
"cristã, socialista e solidária"; o cardeal Miguel Obando y Bravo,
ex-inimigo do sandinismo, oficiou o casamento e agora costuma inaugurar
com uma oração os atos públicos da Frente Sandinista.
Deus também é onipresente nos discursos do venezuelano Nicolás Maduro,
que declarou ter reencontrado a fé depois de se declarar ateu aos 18
anos por causa do comportamento da Igreja Católica. "Hugo Chávez fez de
nós verdadeiros cristãos", disse o presidente venezuelano em 7 de abril
passado, durante um ato de campanha para as eleições presidenciais do
dia 14, nas quais foi declarado vencedor. A descriminalização do aborto e
do consumo de drogas como maconha, ou o estabelecimento do matrimônio
homossexual, não são sequer tema de debate na Venezuela governada por
Maduro, nem o foram durante os 14 anos de mandato de Chávez. Pelo
contrário, a condição de homossexual é assumida pela nomenclatura do
chavismo como desonrosa. O próprio Maduro, sendo chanceler, qualificou a
liderança opositora de "homossexuais e fascistas", durante um discurso
transmitido pela rede de TV estatal em 12 de abril de 2012.
Além da animosidade no uso da linguagem, há analistas como o
venezuelano Teodoro Petkoff – editor do jornal "TalCual" de Caracas,
ex-militante comunista e ex-guerrilheiro - que consideram que a esquerda
latino-americana está dividida em dois grandes blocos, que definem sua
posição. "Há uma esquerda ideologicamente formada, a mais antiga, que
costuma assumir com muita coragem posturas que confrontam o peso da
tradição", indica, referindo-se à esquerda uruguaia, liderada pelo
presidente José Mujica, e a setores da esquerda brasileira e argentina.
Há outra esquerda, afirma o editor de "TalCual", que se define em
termos políticos mais que ideológicos e que atende ao peso de tradições
morais centenárias, compartilhadas pelo grosso da população da América
Latina. "Essa espécie de neoesquerda de origem chavista, que de esquerda
só tem o apelativo, é absolutamente tradicionalista nessas questões. Em
alguns casos isto corresponde a uma atitude sincera sobre assuntos
morais e éticos que não separam religião de política. Em outros, é puro
oportunismo, na tentativa de se manter perto da clientela eleitoral",
conclui Petkoff.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalve
Fonte: Uol Internacional