terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Após décadas de saques, Museu Nacional do Afeganistão recupera relíquias


The New York Times

Rod Nordland
Em Cabul (no Afeganistão)


Cada uma das antiguidades que é restituída às salas do bombardeado, saqueado e agora reconstruído Museu Nacional do Afeganistão envia uma mensagem de teimosia e resistência.
 


Essas antiguidades representam mensagens para os membros Talibã, que em 2001 quebraram todos os artefatos do museu que, segundo sua interpretação, guardavam alguma semelhança com figuras humanas ou com animais. Mas essa reconstrução também é uma mensagem para outras pessoas: para os senhores da guerra que saquearam o museu, alguns dos quais ainda estão em posições de poder no Afeganistão, e para os corruptos guardiões do passado, que ficaram de braços cruzados enquanto cerca de 70 mil objetos saíam porta afora.



Apenas alguns anos atrás, o Museu Nacional do Afeganistão, localizado na capital Cabul, era definido pela quantidade de peças de suas coleções que tinham se perdido –cerca de 70% de seu acervo foram destruídos ou roubados, incluindo objetos preciosos que remontam à Idade da Pedra e à do Bronze, passando pelo período do zoroastrismo e do budismo e pelo início do Islã, e que documentavam algumas das culturas antigas mais misteriosas do mundo.

Atualmente, o Museu Nacional pode ser mais bem definido pela quantidade de peças que foram recuperadas.

Trezentos entre os 2.500 objetos mais importantes que o Talibã havia destruído foram cuidadosamente restaurados nos últimos anos, e muitas outras peças estão armazenadas em caixas e bandejas, aguardando sua vez para serem recuperadas.

Os objetos roubados também estão retornando ao museu, após agentes aduaneiros de todo o mundo terem recebido informações sobre como identificar artefatos de origem afegã. Nos últimos anos, a Interpol e a Unesco uniram forças com governos de todo o mundo para confiscar e retornar pelo menos 857 objetos --alguns deles de valor inestimável, como as estatuetas de terracota representando princesas da Báctria (região do atual Afeganistão), com 4.000 anos de idade, que haviam desaparecido do Museu Nacional. Outros 11 mil objetos foram devolvidos depois de serem apreendidos pelas autoridades de fronteira dentro do próprio território do Afeganistão.

A recente modernização do sistema de segurança do museu, financiada pelo governo dos Estados Unidos, acabou de ser concluída, e agora o prédio mantém pelo menos um nível satisfatório de proteção contra o tipo de pilhagem que vinha atormentando a instituição repetidamente ao longo das últimas três décadas e meia.


E uma equipe de arqueólogos do Instituto Oriental da Universidade de Chicago está trabalhando no local há um ano e meio --com a ajuda de uma subvenção do governo dos EUA, que deve durar três anos-- para registrar todos os objetos pertencentes às coleções do museu, criando um registro digital. Esse registro se destina a proteger as peças contra roubos futuros, e o projeto também ajudará na realização das restaurações, além de servir como um recurso para estudiosos de todo o mundo.

"Se você não sabe o que possui, você não é capaz de proteger suas peças", disse Michael T. Fisher, arqueólogo norte-americano que coordena a equipe de Chicago. "Ao tomar conhecimento de tudo o que você tem, toda a história se abre diante de você, e é incrível o que se pode ver. Uma boa parte dessa coleção é de nível internacional."

Omara Khan Masoudi é o diretor do museu. Ele não é formado em arqueologia, mas tem credenciais ainda mais importantes: é um dos principais guardiões do tesouro da instituição. Esses guardiões são os homens que mantinham as chaves dos cofres dentro dos quais alguns dos maiores tesouros do museu estavam escondidos, incluindo o tesouro báctrio, uma coleção de requintados artefatos de ouro e prata que datam de mais de 2.000 anos atrás.

Usando de sua astúcia e de imposturas, Masoudi e seus companheiros guardiões mantiveram muitos desses objetos de valor --principalmente aqueles mais fáceis de serem derretidos-- seguros durante a violenta guerra civil do país e o regime islâmico que se seguiu.


Eles esconderam algumas das melhores estátuas em salas do Ministério da Cultura ou em cantos obscuros das salas de armazenamento espalhadas por todo o museu, preservando muitas delas antes do ataque furioso do Talibã, ocorrido em março de 2001. Nessas poucas semanas de fúria, os combatentes islâmicos se apressaram em destruir imagens de pessoas ou de animais, consideradas por eles como sacrílegas, incluindo as antigas e gigantes estátuas de Buda, localizadas na província de Bamian.

Depois desse ataque, pessoas como Abdullah Hakimzada, um restaurador que passou os últimos 33 anos trabalhando no museu, foram chamadas para varrer os fragmentos dos objetos que o Talibã havia destruído, distribuindo muitos dos cacos apressadamente em sacos e caixas, que mais tarde ajudariam no trabalho de restauro.

"Se nós tivéssemos tempo e recursos suficientes à nossa disposição, poderíamos restaurar tudo", disse ele.
Hakimzada também foi um dos principais guardiões de três cofres localizados dentro do palácio presidencial, cofres que o Talibã nunca encontrou.

Depois de anos de danos causados pelo Talibã e pelos senhores da guerra afegãos, muitos dos quais saquearam as coleções do museu a pedido de ricos colecionadores, o museu estava uma bagunça ao ser reaberto, em 2004. Seus depósitos estavam lotados de caixas e sacos cheios de fragmentos, e até mesmo objetos intactos tinham se deteriorado durante os anos em que o museu ficou sem grande parte do teto.

Desde então, várias equipes de arqueólogos, principalmente equipes francesas, ajudaram a reformar e a reorganizar o museu. Restauradores como Hakimzada foram enviados ao exterior para estudar as técnicas de restauração usadas por museus da Europa e dos EUA.

Quando a equipe de Fisher começou a registrar e digitalizar a coleção, em 2012, foi como fazer arqueologia dentro do próprio museu.

"Às vezes, nos sentimos como se estivéssemos escavando o presente, como se estivéssemos visitando o museu e observando o que aconteceu", disse ele.

Durante o processo, ocorreram descobertas marcantes, muitas das quais ainda não foram colocadas em exposição por falta de espaço e de recursos para a organização de uma mostra. Um novo local para o museu está previsto, mas o projeto ainda está em fase de captação de recursos.

Alguns dos sucessos mais satisfatórios da empreitada de recuperação da instituição afegã foram as restaurações de objetos despedaçados pelos talibãs. Muitas vezes, os arqueólogos não sabiam nem mesmo a que objeto os fragmentos pertenciam.

"Era como pegar 50 quebra-cabeças, daqueles mais difíceis de montar e com as peças todas misturadas, sem saber se você tem todas as peças e sem ter nenhuma imagem para te guiar, e montá-los", disse Fisher.

Dificilmente um único dia se passa sem que os arqueólogos de Chicago descubram algum novo e intrigante objeto nos depósitos, como uma tampa de barro com uma inscrição em Kharoshti, uma língua extinta, encontrada em dezembro passado.

"Há tantas peças que são muito, muito, muito bonitas", disse Masoudi. "Mas, primeiro, nós precisamos de um novo edifício".

As joias da coroa entre todas as coleções do museu são as peças do tesouro báctrio, recuperadas em 1978 por arqueólogos russos em túmulos antigos localizados no norte do Afeganistão.

Essas peças têm estado em exposições externas desde 2007, e já foram vistas na França, na Holanda, na Grã-Bretanha, na América do Norte e na Austrália. Elas garantiram ao museu uma importante fonte de renda, que soma US$ 3,5 milhões até o momento.

Mas, como a guerra contra o Talibã se estendeu, alguns aqui no Afeganistão veem mais um bom motivo para manter essas peças em exposições externas.

"Eu, pessoalmente, espero que elas nunca mais voltem ao Afeganistão", disse Hakimzada. "Pelo menos, quando vemos o local onde as peças estão agora, nós sabemos que elas estão seguras".

Tradutor: Cláudia Gonçalves

Fonte: UOL Internacional
Matéria Original:  The New York Times