segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Não é piada, é verdade

Antes relegado ao pitoresco de pautas ocasionais, o humor ganhou em anos recentes o estatuto de um autêntico programa de pesquisas históricas. No cenário contemporâneo, em que falharam os grandes projetos políticos de transformação global, os historiadores começam a olhar na direção de uma história cultural do humor, mostrando o quanto o riso incentivou laços de sociabilidade, sublimou ressentimentos, estilizou a violência e não raro virou arma social e política dos impotentes, forjando uma cultura política da divergência. Além, é claro, de divertir.Curioso e revelador é o caso dos historiadores dedicados ao estudo do humor brasileiro. À primeira versão do meu livroRaízes do Riso – originalmente uma tese de livre-docência –, muitos diziam: “É uma tese de Teoria da História, mas estuda piadas!” É certo que eu não estudava propriamente as piadas, mas, sobretudo, os seus usos e significados peculiares a cada época. Acabei dando livre curso à brincadeira dos colegas porque me parecia reveladora da representação humorística da história brasileira, só compreensível pela anedota a seguir.

País da piada pronta

Quando o viajante alemão Von Papen (1879-1969) passou pelo Brasil, em 1912, contaram-lhe que, na reforma urbana da capital, o único prédio que desabou, por erro de cálculo, foi o do Clube de Engenharia. O alemão sorriu diante da piada, mas disseram-lhe que o caso não era para rir, pois acontecera de fato. Mendes Fradique – pseudônimo do humorista brasileiro Antonio Madeira de Freitas (1893-1944) –, que relatou o episódio, concluiu: O humorismo tem objeto no contraste direto entre o que é e o que deverá ser. Ora, no Brasil, tudo é precisamente como não deverá ser, de modo que se torna impossível este contraste e, portanto, igualmente impossível o humorismo.”Seria verdadeiro tal diagnóstico? No Brasil, o cômico seria parte incontrastável da vida real e o humorismo impossível porque a realidade já superava a anedota? Ou o caso citado exemplificaria o contrário: se não há contraste, é porque o humor é indistinguível, já faz parte da vida e, portanto, vivemos em pleno “país da piada pronta”? Dilema complicado, que, tanto nos meus escritos publicados quanto em pesquisas em curso, tentei resolver. Mais do que noutros lugares, nossa história é permeada de rápidos flagrantes que brilham por trás da ingênua e pitoresca diversão. Para o historiador, constituem momentos de uma ética emotiva que salva o indivíduo da ausência de dimensões formais que funcionem ou do pavor que ele tem de viver numa sociedade cheia de mediações abstratas. Aqui, Sérgio Buarque de Holanda, lá do seu Raízes do Brasil, dá aquela piscadela cúmplice para um país em que há uma profusão de leis que nunca dão certo: funcionam os tratamentos em inho, a simpatia – mas também a corrupção, o jeitinho ou a violência, que se sabem impunes, terminando tudo com o toque especialíssimo e emotivo da piada. Que também retroalimenta a mesma ética emotiva, pois o riso é fundamentalmente emoção. Ou já resolvemos o dilema de Fradique, superamos nossos fantasmas do passado e viramos um país sério, no qual o riso seria autêntica libertação?

Elias Thomé Saliba é professor titular de Teoria da História na Universidade de São Paulo e autor de Raízes do Riso(Companhia das Letras, 3ª. ed., 2008).


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